quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Você sabe que eu sempre tive medo de não ser ninguém. (Não que eu ache que algum dia eu tenha sido alguém, mas quando a gente sorria junto, eu sentia algo próximo disso, eu não pensava em alguém ou ninguém, nem nada além de viver aquilo). E esse talvez seja o maior medo que me assolava, de tantos que você conhecia tão bem e esfregava na minha cara todo dia até que eu superasse.
Quase não fico mais em casa, quando fico, é deitada no chão do meu quarto olhando pro teto e ignorando todo o barulho das pessoas lá fora, do celular chamando, da música que coloquei pra ouvir. Estas são as horas em que me deparo com os medos que resolveram transbordar, voltar, como se você fosse um escudo pra eles e de repente nada mais me protege deles. Às vezes eu tenho convicção de que eles vão me engolir. A grande questão é que eu não sei mais o que fazer com eles ou com o meu corpo no mundo. Eu não sei mais o que eu não quero (você sabe que eu nunca nessa vida soube o que eu quis, mas sempre soube enumerar tudo que eu não queria). O real motivo de eu passar tão pouco tempo em casa é que eu fico pra lá e pra cá procurando gente e lugares e qualquer coisa que tape esse buraco em mim, aquele do vazio que eu achei que tivesse curado com a sua ajuda. E eu noto que junto com todos os medos, veio o pavor de ficar sozinha. Lembro de você sorrindo e me fazendo cafuné me perguntando quanto tempo mais de autismo eu precisaria aquele dia - enquanto todo mundo criticava minha necessidade de fingir que ninguém existia e sentar num canto da sala com uma caneta, um papel e meus pensamentos - que você já estava com saudade. Eu fazia uma careta pra você parar de falar comigo, tava atrapalhando meu raciocínio e você sabia que eu queria dizer que em dez minutos eu estaria deitada em cima do seu caderno te pedindo carinho e te impedindo de copiar a matéria do quadro - que você só fingia que copiava, nunca precisou dessas convenções, eu nunca conheci alguém com uma memória tão boa e uma inteligência tão excêntrica quanto à sua. Você nunca reclamava, implicava por 58 motivos diferentes da vez anterior e gastava duas horas seguidas alisando meu braço, cabelo e costas. Você sabia que eu precisava sentir o porquê de ter um corpo nesse horrendo mundo tendo tantos outros mundos e tantos outros corpos pra habitar, tendo tantas outras vidas que eu gostava de inventar que teria estando no corpo de outra pessoa. E aí eu me sentia tão acolhida e tão feliz por você estar tão perto. Eu me sentia tão acolhida e tão feliz com a sua existência. Ninguém entendia nada. Até os nossos professores ficavam tentando explicar, mensurar e enquadrar o nosso amor. E a gente ria da cara de todo mundo, pois sabíamos que ninguém jamais conseguiria. E sabíamos que éramos pra sempre enquanto todo mundo que nos criticava se desfazia sob nossos olhos. Aquela época eu sabia de muita coisa. Hoje eu não sei de mais nada, de nada. E daí vem mais um medo. Eu sei que saber é uma necessidade besta dessa sociedade nojenta e hipócrita, mas eu me rendo e preciso. Eu preciso ter certeza de qualquer coisa, qualquer uma e não tenho nenhuma. Antes eu tinha de que a gente se teria mesmo que a se perdesse. E eu posso te dizer, embora você não esteja ouvindo, que eu queria muito te dizer que quando você chegava na minha casa sem avisar e ficava me fazendo cafuné enquanto eu resmungava de alguma coisa, foram poucos dos únicos momentos em que eu não me sentia sozinha. Eu queria ter te contado que eu só permitia os meus momentos de autismo e isolamento porque quando eu quisesse companhia eu teria você. Eu só me permitia o adeus porque eu tinha pra onde voltar.
Eu prometi que viveria por você. Mas também prometi que cuidaria de você e jamais deixaria nada te acontecer. E também prometi que cuidaria de mim e faria o que me faz bem e não o que esperam que eu faça. Eu prometi que pararia com essa onda de deixar de existir. E eu me sinto a pior pessoa do mundo, eu nunca fui boa em cumprir promessas.

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