Mãe, sei que você ainda não entendeu o motivo pelo qual eu resolvi passar meu pré-aniversário e o aniversário longe de você. Talvez por estar sem cabeça, talvez por falta de explicação. Eu poderia te contar que enquanto te escrevo estou deitada na barraca na beira de um rio ouvindo o barulho que ele faz em uníssono com a mata, você sabe como eu sou capaz de trocar o mundo por um lugar desses. Mas a verdade é que eu escolhi ficar sozinha, conversando o mínimo que posso até com as pessoas que eu encontro pra aprender a me suportar. Desde que eu fiz 20 anos e descobri a síndrome do pânico eu to sempre cheia de gente à minha volta. Sim, eu, a criança que amava ficar trancada no quarto acompanhada dos seus amigos imaginários e brinquedos, perdi a capacidade de estar só. Quase todos os dias eu lembro de quando eu voltei pra casa quando fiquei doente. Do quanto eu parecia um cãozinho abandonado encolhido no banco de trás sem conseguir conversar de tanta vergonha e de tanto medo. Lembro de, já na sua casa, você me pedir pra comprar um refrigerante pro almoço na lanchonete que fazia parte do nosso prédio, eu só tinha que descer uma escada e abrir um portão sozinha e simplesmente não conseguia. Passei 6 anos da minha vida assim: com medo. Ano passado eu descobri que meu maior medo é o que eu tenho de mim, do que sou capaz de fazer quando o pânico toma meu corpo e minha mente, de como eu, a rainha do controle, não consigo controlar meu corpo ou meus atos. Eu fiquei pra lá e pra cá feito bola de pingue pongue por pavor de mim mesma. No final do ano passado eu me vi realmente sozinha pela primeira vez na vida. Não que você não estivesse lá pra mim ou que mil pessoas que me amam tenham deixado de me apoiar, foi algo interno, um fracasso substancial, um cansaço súbito. Eu não tinha mais referência de nada, tampouco uma casa pra onde eu quisesse/pudesse voltar. Eu ficava lembrando do que os psiquiatras que você me levava quando eu adoeci diziam "quem tem síndrome do pânico precisa de estabilidade, precisa ter segurança" e do quanto você moveu mundos e fundos pra isso sempre. E então eu me vi sem estabilidade, sem segurança, sem referência, sem nada em que eu pudesse segurar além de mim. No fundo do poço, mãe, só tinha eu. E, como você me diz sempre, tem coisas que só eu posso fazer por mim. Então eu fiz. Estar aqui hoje é uma dessas coisas que só eu posso fazer por mim. Eu to emotiva e fragilizada como fico em todo aniversário desde 1998 e, ao invés de correr pra colos outros, eu corri pro meu. De onde de escrevo só tem o rio, a mata, meus livros e eu. Não tem pra onde fugir, entende? Já acabaram os ônibus que poderiam me levar de volta pra casa caso eu passe mal. Não tem absolutamente ninguém que eu conheça aqui. Eu não sei andar por essa cidade (não sei nem aonde vende água). O celular não pega. Não tem luz. Em quatro horas o dia vira e eu faço 26 anos. Mãe, eu estou serena. Eu estou única e exclusivamente comigo e não tenho medo pela primeira vez em 72 meses. Meu coração acelera o tempo todo, claro que não se vence uma taquicardia de uma hora pra outra, tampouco se faz sumir uma sensação de sufocamento assim tão fácil, mas então eu respiro, coloco a mão no peito, olho pra mim mesma de olhos fechado e sei que vai passar. Mãe, não sei se é cedo pra dizer (se for, depois eu des-digo): eu estou curada.
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