Desde criança eu não gosto do mês de agosto, coitado. Fico o ano inteiro fingindo que não percebo sua chegada, fingindo que não sei que depois dele, vou ser outra. Esse ano não foi diferente.
Se houvesse mesmo um modo disso acontecer, diria que mudei de alma, só isso explicaria isso que sou, que vejo hoje. Um dia, eu acordei de manhã e vi que não via mais as coisas com os mesmos olhos de antes, já não via nem a mim. Cansei de escrever, chorar e dizer que eu tinha saudade de mim mesma, que eu estava largada no meio de uma estrada deserta esperando que eu mesma chegasse pra me resgatar. Não aconteceu. Pelo menos não da maneira que eu queria...
Quando eu estava lá deitada no meio da estrada, me esperando, aconteceu uma coisa: minhas lágrimas acabaram. E quando isso aconteceu e eu finalmente abri os olhos era noite, e o céu estava cheio de estrelas e então eu comecei a contá-las e depois a ligar uma estrela a outra fazendo desenhos no céu. Respirei fundo, quanto tempo tinha ficado sem respirar? e senti o vento movendo lentamente as ondulações do meu cabelo. Levantei, sorri e percebi que as estrelas me diziam adeus enquanto o sol acordava. Foi então que eu vi, vindo lentamente junto do sol, uma menininha que lutava contra os próprios ímpetos pra não sair correndo e me abraçar, me deu a mão e falou "não quero mais andar sozinha, vem comigo? quero te mostrar uma coisa!". Não andamos muito pra chegar em uma bifurcação, onde ela me fez sentar ao lado dela, ainda de mãos dadas. "eu não suporto ter que escolher, eu sempre queria ter os dois. Mas eu já sabia que ia dar nisso e por isso que eu te trouxe comigo. Aliás, a gente nem se apresentou: oi, meu nome é Amanda, tenho 7 anos, minha cor favorita é rosa e não conta pra ninguém, mas eu morro de medo do escuro, dos meus pais se separarem e de todo mundo ir embora e me deixar pra trás" "e o que você tava fazendo sozinha numa estrada deserta?" "ué, você que me chamou!" "eu?" "não seja boba! Você tava agora mesmo chamando por uma resposta! Eu vim!" "você se acha neah pirralha? Desde quando você é a minha resposta?" "Desde quando você me deixou mandar na sua vida, desobedeceu tudo que mamãe ensinou, mentiu, se enganou, fez um monte de coisa feia que eu nem posso falar..." "você fez neah?" "o que você esperava? mamãe não me deixa nem brincar na casa da vizinha e de repente você vai e deixa eu sair pra onde quiser, comer tudo que eu quiser, fazer quantas pirraças eu tiver vontade sem ficar de castigo depois" "ta, já sei disso tudo. agora me fala logo o que a gente ta fazendo aqui que eu tenho que encontrar a Amanda de 18 anos, ela sim resolveria tudo, se eu fosse ela de novo" "nossa, a mamãe ta certa quando diz que eu só falo besteira, te ouvindo agora ficou fácil entender" " fala logo!" "se a gente for pela direita, eu continuo mandando, continuo brincando de conhecer todo mundo e todos os lugares, de não pensar nas consequências, de não ter consciência e de se dar bem mentindo. se a gente for pela esquerda você manda, fica aí com suas chatices e responsabilidades que sinceramente eu acho você nova demais pra assumir, você só tem 21 anos e quer se mudar por dentro, não quer mais perder a consciência e agora deu pra não querer mentir nem pra si mesma" "e o que você ta esperando pra ir pela direita se é muito mais legal e tudo que você quer é liberdade?" "vou te mostrar uma coisa, mas promete que não conta pra ninguém?" "de dedinho" Eu, aos 7 anos, levantei a minha camisa laranja do ursinho pooh e mostrei pra mim, aos 21, meu peito todo costurado com linhas tortas, de modo que dava pra ver o negro dentro do meu peito e sangue seco agarrado em volta do machucado. "quê que isso?" chorei ao perguntar. "você" "como?" "se eu for pela direita, meu coração acaba assim: destruído e doído. Você lembra quantos sonhos eu tenho, em como eu acredito no amor?" "lembro, às vezes eu lembro" "eu te fiz ver que nada disso é importante e ao invés de você consertar os arranhados do meu coração de criança, você acumulou tudo e nosso coração ta assim, mas eu levei ele comigo porque eu sei que você tem mais medo que eu e ia ter medo de você mesma assim" "eu tenho medo de mim mesmo assim" "por onde a gente vai agora?" "eu não quero nunca mais te deixar sozinha, eu quero cuidar do seu coração, vem aqui, nossa, a gente tem olhos lindos. Não chora, o que você ta pensando?" "eu senti saudade de você. Sabe, você às vezes é pior que a mamãe, fica reclamando de tudo, se culpando, controlando, implicando. Você fica querendo estudar, fazer serviço voluntário, arrumar a casa e a cama, mas na maioria das vezes você é legal" "sou?" "claro que é! Você sorri fácil, respira o ar puro da floresta como se fosse a última vez, vai acampar, perdoa todo mundo, ama demais, passeia, acampa, escreve e quando não tem ninguém olhando, deseja uma filha igual a mim. Eu não quero mais ficar sem você" "mas você se diverte mais indo pela direita e lá só entra crianças" "é, eu sei" (silêncio) "se eu for com você pela esquerda, você promete que vai brincar comigo às vezes, deixar eu contar piada e dançar como se ninguém tivesse olhando?" "pelo menos uma vez por dia".
Eu não voltei no tempo, nunca consegui, mas passei agosto conversando comigo, passei agosto fechada em mim mesma tentando decidir por qual caminho eu iria, passei agosto inteiro pra dar as mãos a mim mesma e seguir pela esquerda. Passei agosto pra encontrar com várias de mim pelo caminho e era lá que estava a menina de 18 anos que eu tanto procurei, sentada na beira de estrada me procurando enquanto lia um livro deitada na rede. "porque você demorou tanto?" lembro de ouvi-la perguntando "eu achei que a gente nunca mais ia ser feliz de novo, sua lerda! Aposto que parou em todos os lugares que encontrou uma de nós pra matar a saudade de si mesma" "ô garota, deixa pra falar assim com nossos irmãos e vamos logo que ta chegando setembro" "e daí?" "e daí que é quando os ventos mudam e a gente tem que estar pronta" "pronta pra que?" "pra ser eu mesma de novo. E dessa vez, eu comando, vocês só podem dar palpite. Prometo que no final, dessa vez, a gente vai ser feliz".
Nenhum comentário:
Postar um comentário