Acordo com um chute na barriga como todos os dias nos últimos 7 meses. O terceiro filho que cresce no meu ventre faz questão de me acordar todos os dias na mesma hora, talvez por fome, talvez pra me lembrar que o direito de dormir o quanto quiser me foi revogado a quase 6 anos. É cedo, nem 7 da manhã e me contento por lembrar da folga de fim de ano que consegui pra poder viajar com as crianças, saio de fininho do meio dos edredons por não ser a única dormindo e quase levo a cama nas costas. Bagunço o cabelo encaracolado do primogênito e acaricio as costas da minha menininha, avisando a hora de acordar e, ao contrário do contrasenso de sempre, sorriem me perguntando se já coloquei as formas de estrela do mar pra brincarem na areia na mochila de camping que cada um tem, mesmo com tão pouca idade.
Vou pra cozinha preparar o café da manhã e me dou por feliz: mais um ano consegui tudo que quis. A gravidez pesa meu corpo e isso me deixa desconfortavelmente alegre. As crianças colocam verde no prato diariamente sem que eu precise me descabelar pra isso, temos um jardim com girassóis e um pé de amora no quintal. Um cachorro amarelo como os meus olhos, segundo a minha caçula. Uma casa simples e confortável pra onde meus herdeiros podem voltar de suas escolas com pedagogia Waldorf e eu, do meu emprego nas clínicas que tanto sonhei. Viajamos duas vezes por ano, acampamos mensalmente e vejo pôr do sol no mar duas vezes por semana enquanto espero e assisto às aulas de natação infantil na praia. Tenho uma estante de livros enorme na sala e me orgulho por ver meu exemplo seguido com livros de contos de fada, por maior questão que eu faça de explicar a eles que o final nem sempre é feliz. Recebo abraços ao acordar e juras de amor antes de dormir. Mensagens transbordando afeto durante o dia me são comuns assim como sorrisos que vejo nas fotografias espalhadas pela casa. A consciência religiosa da minha família é alta, sem sermos beata, na medida. Respiro fundo tomada pela certeza de felicidade que vem das pequenas coisas e volto pra cama pelo corredor conferindo se as crianças acordaram.
Procurando certidões de nascimento pra viagem, encontro uma foto sua 3x4 que roubei na sua carteira a quase 10 anos atrás. Tem quase 3 anos da última vez que te vi, na fila do banco em uma cidade de praia que eu jamais esperei te encontrar. Confesso que fiquei balançada. Confesso que me segurei nas mãozinhas gordinhas entrelaçadas na minha e tirei força delas. Mas foi mais tranqüilo do que imaginei, superei você com a vida dos meus sonhos. Não vou dizer que não penso mais em você, não vou dizer que quando te vi de mãos dadas com seu filhinho, a cara da criança que eu sonhei, não balancei, tampouco que não quis te abraçar e fazer o tempo parar, feito anos atrás quando nos despedíamos na rodoviária da cidades pra onde você se mudava esporadicamente. É bom sentir que a saudade não mais assola meu peito, é bom voltar pra casa sabendo que alguém me espera, que não vou precisar mudar minha vida inteira daqui a seis meses, que a angústia no meu peito não é grande ao ponto de fazer meu coração doer diariamente. Ontem antes de deitar vi suas atualizações em uma rede social, fotos da sua família com seus pais no Natal e sorri saudosamente lembrando de todo mundo que jurou que eu estaria ali nos dias de hoje, sorri lembrando das últimas noticias suas que me deram contando da sua merecida realização profissional que tanto me fazia temer o futuro que achei que teríamos. Mas é ano novo e prefiro não pensar nisso, em você, no que eu quis, no que não quisemos e lembrar apenas dos motivos que me fizeram ir embora de vez, é neles que me apego. É ano novo e meus filhos me esperam pra viajar. É ano novo e, pensando bem, a gente seria bom juntos, mas somos melhores separados, ouvi dizer que muito amor estraga qualquer casamento. É ano novo e as mochilas estão prontas, as barracas no carro e o camping reservado. É ano novo de uma vida inteira sem a gente pela frente.
:/
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